Olá!
Espero que estejam bem.

Ainda março, apesar de estarmos já a mais de meio de abril. Ora bem em março li 5 livros e foi um mês marcado por leituras com um forte eixo feminista e queer, em perfeita sintonia com o Dia Internacional da Mulher e o Dia da Visibilidade Trans. Li histórias sobre mulheres silenciadas, apagadas, julgadas, mas também sobre mulheres que resistem, questionam e se recusam a aceitar os papéis que lhes foram impostos.
Algum livro que tenham lido recentemente que vos tenha marcado particularmente?

Nevada, de Imogen Binnie
Ficção Literária; Ficção Queer; Ficção Trans.
Fiquei completamente rendida. Que livro. Que personagem. Nevada é o testemunho de Maria Griffiths, uma mulher trans a viver em Nova Iorque no início dos anos 2000 e que trabalha numa livraria independente, para onde se desloca diariamente na sua bicicleta, (mal) agasalhada no seu casaco de ganga que é uma tela para os seus patches feministas, queer e punk.
Maria tenta manter algum tipo de equilíbrio emocional enquanto o seu mundo parece desmoronar-se. Quando a sua relação termina de forma abrupta e ela se sente desligada de tudo, Maria parte numa espécie de road trip existencial, sem mapa nem destino claro. O livro divide-se em duas partes: a primeira, mais íntima e urbana; o dia-a-dia de Maria pelos seus olhos, pensamentos e ações, sem filtros; a segunda, mais aberta e distante da experiência pessoal de Maria, mas igualmente cheia de fricções e descobertas, nomeadamente a da amizade com um jovem que vive num suburbio isolado no Nevada.
A primeira parte foi, sem dúvida, das minhas experiências literárias favoritas de sempre. É um mergulho direto na cabeça de Maria: na sua raiva, na sua ironia, nos seus traumas, nas suas tentativas de compreender o mundo e de se compreender a si própria. A escrita é crua, direta, sem floreados, mas tão honesta que às vezes custa respirar. E é precisamente isso que me fez amar tanto este livro: a brutal franqueza de Maria, as suas falhas, a sua lucidez, o facto de estar a tentar, sempre a tentar, mesmo quando tudo parece impossível.
Maria não tem respostas e isso é o que a torna tão inspiradora. É uma personagem que vive em interrogação constante, que se recusa a aceitar uma vida que não é a sua, mesmo que não tenha um plano claro para encontrar outra. Ela é ferozmente ela própria, unapologetically herself, e isso é raro, precioso e profundamente comovente. Há uma força punk na sua vulnerabilidade, na forma como ela enfrenta o vazio sem a menor garantia de que algo melhor está à espera.
A segunda parte do livro é um registo diferente, mais deslocado, lento e focado noutras personagens (e confesso que senti um pouco a ausência da voz interior de Maria com a mesma intensidade). Mas mesmo aí, o livro mantém essa inquietação de fundo, essa recusa em oferecer soluções fáceis, ou arcos narrativos reconfortantes. Há frustração, há silêncio, há uma série de encontros que não chegam a ser revelações e isso também é profundamente real.
Nevada é um livro que se senta connosco no chão (e estou a escrever isto sentada no chão, num momento de ímptuosidade, bem ao jeito de Maria), no meio da confusão, e diz: “sim, isto é uma merda, mas não és a única.” É radical, não só pelo tema, mas pela forma como escolhe não suavizar nada. E Maria, com a sua raiva, a sua ironia, o seu cansaço, o seu amor pelos livros, pela teoria (queer, social…), pela internet e pelos blogs, e pela sua capacidade infinita de questionar tudo, é das personagens mais humanas que já li.
No final, Nevada é sobre sobreviver sem um guião. Sobre viver em rutura. Sobre não saber, e mesmo assim continuar. É maravilhoso e um kick de “fuck it”.
Kim Jiyoung, Born 1982, de Cho Nam-Joo
Ficção Contemporânea. Coreia do Sul.
Li este livro e fiquei com aquela sensação de que, por mais simples que algo pareça à superfície, às vezes é precisamente essa simplicidade que nos desarma. O livro acompanha a vida de Kim Jiyoung, uma mulher “comum” sul-coreana, desde a infância até à idade adulta, passando por todos os estágios que, à partida, são esperados de uma mulher naquele contexto: filha obediente, aluna dedicada, profissional esforçada, esposa presente... Mas é precisamente neste percurso aparentemente “normal” que a violência se revela, não de forma explícita, mas estrutural, constante, repetida, muitas vezes invisível.
O que mais me impressionou foi a clareza e objetividade da escrita. Cho Nam-Joo não enfeita, não dramatiza, não faz rodeios. Há uma frieza quase documental, como se estivéssemos a ler um relatório íntimo, o que torna tudo ainda mais angustiante. A escrita é confessional e expositiva, como se a protagonista dissesse: “Isto aconteceu. E isto. E isto também. E ainda isto.” E o efeito cumulativo é devastador.
Kim Jiyoung é uma figura que funciona como espelho de milhares, milhões, que cresceram a ouvir que deviam ser discretas, prestáveis, e que, mesmo quando fazem tudo “certo”, são constantemente empurradas para o fundo da hierarquia social e familiar. A descida dela ao esgotamento emocional é contada com uma sobriedade que quase nos faz esquecer que estamos perante uma tragédia, e talvez seja o elemento que permite uma identificação tão imediata com os contexto de tantas de nós.
Outra coisa interessante é o uso de dados reais e estatísticas inseridas no meio da narrativa, como um lembrete constante: esta história não é uma exceção nem uma fantasia. A ficção deste livro mais não faz do que revelar uma realidade de inequalidade, opressão e abusos sistémicos a que as mulheres são sujeitas nas mais variadas áreas da vida, ou em todas, na verdade. Kim Jiyoung, Born 1982 não oferece grandes respostas. Mas também não precisa. O livro é um grito calmo, uma denúncia suave mas intransigente. Uma chamada de atenção que se impõe pela sua própria ordinariedade. É um daqueles livros que devia ser lido e relido pela forma como desmonta, com uma precisão quase cirúrgica, os mecanismos que condicionam e silenciam tantas mulheres.
The Witches of Vardø, da Anya Bergman
Ficção Histórica.
Gostei muito! O romance é uma ficção histórica sobre os julgamentos de bruxas que aconteceram no norte da Noruega no século XVII, mais especificamente em Vardø, uma pequena ilha assolada pelo frio e pela superstição. O livro segue várias mulheres, entre elas Ingeborg, Maren e Kristin, e a forma como os seus destinos se entrelaçam num ambiente opressivo, onde o medo, o poder e o fanatismo religioso determinam quem vive e quem arde na fogueira.
Uma das coisas que mais me cativou foi a riqueza das personagens femininas. São tão diferentes entre si, com percursos e motivações distintas, mas ligadas por uma força comum: a recusa em aceitar a submissão. Há algo profundamente comovente na forma como o empoderamento feminino surge aqui, não como uma afirmação individualista, mas como união, como capacidade de abertura à diferença e à empatia.
E depois, a cultura Sámi. Não sabia muito e foi fascinante descobrir mais sobre os seus rituais, o seu modo de vida, a relação com a natureza, com os animais, com o tempo. A autora tem um cuidado extremo com os detalhes, nada é gratuito nem deixado ao acaso. Tudo tem um lugar, tudo tem um eco narrativo, uma correspondência simbólica. Há um equilíbrio entre rigor histórico e lirismo que me impressionou imenso. A parte da herbalogia, por exemplo, é trabalhada com tanto carinho, tanto conhecimento, que quase se sente o cheiro das plantas nas páginas; bem como o frio e o gelo desolador e opressor de Vardø, ainda assim, mais suportável do que a crueldade dos homens que usam, abusam e temem as mulheres.
Mais do que contar uma história sobre “bruxas”, o livro é sobre a importância das narrativas: das que nos contam, das que contamos sobre nós mesmas, das que sobrevivem ao tempo e das que são silenciadas. É sobre como as lendas, os mitos, as histórias populares funcionam como forma de resistência e como guardiãs da memória histórica. Sobre como o que é contado molda o que é lembrado, e o que é lembrado molda o que é possível.
E saber que tudo isto aconteceu mesmo (e numa escala ainda maior do que a retratada) é absolutamente revoltante. A caça às bruxas foi uma forma brutal e sistemática de controlar, punir e apagar mulheres que simplesmente ousavam ser. É impossível terminar este livro sem sentir indignação, mas também uma enorme admiração pelas mulheres, reais e ficcionais, que nele vivem. The Witches of Vardø é uma homenagem feroz às mulheres que foram silenciadas, e um tributo ao poder da narrativa como sobrevivência. Fiquei absolutamente apaixonada por Ingeborg, Maren e Kristin. São personagens que me vão acompanhar por muito tempo pela sua coragem, pelos seus erros, pela sua humanidade tão bela.
The Penelopiad, de Margaret Atwood
Retelling; Mitologia; Grécia.
A premissa deste livro de 2005 é entusiasmante: dar voz a Penélope, figura tradicionalmente silenciada da Odisseia, enquanto ela narra a sua versão da história desde o campo de Asfódeloso, no Hades (portanto, depois de morta) e acompanhada por um coro das doze serviçais enforcadas por Odisseu. A narrativa cruza humor mordaz, crítica social, ironia e lirismo: o selo Atwood em todo o seu esplendor. É um retelling feminista e uma reflexão sobre poder, classe, género e a forma como as histórias são contadas e por quem.
A escrita é maravilhosa, excelente mesmo: fluida, sarcástica, cheia de camadas. Adoro como Atwood brinca com diferentes géneros literários e registos que vão desde o monólogo, à canção, à farsa, ao lamento trágico. O coro é, sem dúvida, uma das minhas partes favoritas: irreverente, polifónico, revoltado. São as vozes que nunca tiveram reverberação, e aqui falam alto, desconfortam, exigem, interrompem. O coro interrompe, de forma sempre poética, a narrativa de Penélope ao longo do livro, com diferentes formas de expressão: cantos, baladas, diálogos de tribunal, canções infantis, peças de teatro, lamentos fúnebres… Cada intervenção tem um registo e um tom diferente: ora sarcástico, ora doloroso, ora furioso. Mas sempre com o propósito de reivindicar justiça, visibilidade e memória. As serviçais são o coração pulsante do livro porque o transformam numa experiência plural. Não estamos só a ouvir a história de Penélope. Somos confrontades com o que ficou fora do mito, com a violência estrutural e silenciosa que os épicos ignoram. O coro dá densidade, corpo e dor ao texto. E também ritmo, humor, ironia. É um dispositivo literário brilhante.
Mas fiquei um pouco desiludida com a representação da relação entre Penélope e Helena. Há uma insistência desconfortável na ideia de que Penélope nutre inveja pela beleza da prima, que Helena é vaidosa, manipuladora, inconsequente e que, claro, causa desgraça por onde passa. É uma rivalidade muito marcada pelo estereótipo clássico da “mulher contra mulher”, e embora seja possível interpretá-la como ironia ou crítica ao próprio mito, não deixa de repetir dinâmicas que já vimos mil vezes. Tive pena. Num livro que pretende desafiar narrativas patriarcais, não era necessário reproduzir essa tensão feminina simplificada. Queria mais complexidade, mais solidariedade, ou pelo menos mais nuance.
Ainda assim, o livro tem momentos brilhantes. Atwood é mestre em dar voz ao que ficou nas margens da história e mesmo que por vezes essas vozes nos desconcertem ou deixem desconforto, isso também faz parte do processo. The Penelopiad não é uma catarse, é um espelho rachado: Penélope está longe de ser heroica, mas é humana, falível, astuta. E as serviçais, essas, gritam por justiça no meio das falhas de todas as personagens.
É um livro breve, mas cheio de camadas e que vale muito a pena ler.
Inanna, de Emily H. Wilson
Retelling; Mitologia; Suméria.
Demorei imenso tempo a ler este livro, acho que em parte porque decidi ouvir o audiobook numa fase em que achava que ia fazer caminhadas diárias. Spoiler alert: não fiz.
O livro é uma reinterpretação ficcional da mitologia suméria, centrada na deusa Inanna, deusa do amor e da guerra e precursora direta da Ishtar babilónica, da Afrodite grega e da Vénus romana. A narrativa acompanha Inanna ao longo de vários episódios míticos, desde o seu nascimento até à sua idade adulta (um coming of age, portanto) e à sua descida ao submundo. A história de Inanna é contada através das narrativas e pontos de vistas de outras 2 personagens, de forma intercalada com o próprio POV de Inanna. Cada capítulo corresponde assim, a cada uma das personagens: Ninshubar (uma heroína que auxilia as divindades); Gilgamesh (herói lendário) e Inanna.
Gostei imenso de mergulhar neste universo. A cultura suméria não costuma estar muito presente nos retellings contemporâneos, por isso foi mesmo bom conhecer mais sobre as cidades, os ritos, as hierarquias e as relações entre divindades. Um mundo muito anterior ao grego ou romano, mas igualmente fascinante e que eu quero muito conhecer melhor. Fiquei especialmente surpreendida pela positiva com a forma como o submundo, governado por Ereshkigal (irmã de Inanna), é aqui representado: um lugar muito mais psicológico, estranho e solitário do que as representações do submundo mais comuns. E gostei bastante da personagem de Ninshubar, leal, sensível e essencial ao desenrolar da narrativa. É das figuras de que menos conhecia e foi das que mais me cativou pela sua humanidade.
Dito isto, tive algumas dificuldades com o livro. Em vários momentos senti que a narrativa se arrastava e que o ritmo era, de forma geral, inconstante. A personagem de Inanna, apesar de carismática, por vezes pareceu-me pouco madura para alguém com tanto poder e simbolismo. Estava à espera de uma figura mais densa, mais estratega e que representasse de forma mais concreta o que é ser divindade do amor (e da guerra). Os capítulos focados no Gilgamesh foram, para mim, os mais aborrecidos e é pena, porque adoro o Épico de Gilgamesh, estava realmente curiosa com a representação desta personagem, mas principalmente com a do seu fiel companheiro Enkidu, uma personagem fascinante e que aqui é bastante plana.
Li este livro a propósito da retrogradação de Vénus, numa tentativa de compreender melhor o mito de Inanna/Ishtar/Afrodite/Vénus, mas fiquei com a sensação de que, apesar de ter gostado da experiência, não saí com um entendimento muito mais profundo da figura da deusa. Há momentos poderosos, sem dúvida, mas também muitos que se perdem num ritmo desigual.
No geral, Inanna é uma leitura interessante e, em vários momentos, evocativa, com um mérito enorme por trazer ao centro uma mitologia que raramente é trabalhada na ficção contemporânea. Tem o seu lado mitológico, sensual e sombrio, e há cenas muito bem conseguidas, especialmente ligadas à cosmologia e aos rituais. Mas não me arrebatou como esperava.

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Sandra (SØPHIA)